Leidiane já estava
cansada, com a testa molhada colando sua franjinha já grande que
furava seus olhos, quando se sentou na calçada e disse que não ía
mais brincar. Todo mundo ficou chiando porque ela sentou e emburrou a
cara dizendo que dessa vez estava fora.
Depois que todos saíram
da sua frente e voltaram a correr ela logo levou a mão à boca e
voltou a balançar o dente de leite que estava prestes a cair. Ficava
ali, se refrescando numa das raras brisas que sopram durante o verão
de Santa Maria da Vitória, olhando os amigos brincarem.
Quando o coração
voltou a bater normalmente no peito percebeu que estava sentada na
calçada de Sr. Jaime de onde, todas as noites, saía um som
solitário e obscuro de Sax.
A casa de Sr. Jaime de
todas as casas da rua dos Doidos era a casa que mais lhe atraia. Fica
logo abaixo de um poste, ou melhor, fica logo no início da penumbra
que se forma no limiar do reflexo da luz no chão ao redor do poste.
A faixada da casa não ostentava nenhuma tinta. De frete a ela
podia-se ver um pequeno jardim do lado direito, um corredor no lado
esquerdo onde no fundo via-se uma porta que parecia da cozinha. Logo
atrás do jardim, a varando de um quarto que nunca viu a porta
aberta, sequer a janela. A casa de Sr. Jaime é uma casa aberta, mas
que nada mostra. Nunca entrou lá. A casa escondia um universo, e
como tal, misterioso. O lugar onde nossa imaginação não pode
habitar.
E de lá... das
penumbras do corredor da casa de Sr. Jaime, o som lamentoso do Sax. O
som que atravessa todas as memórias da sua infância na Rua dos
Doidos.
Algumas vezes Sr. Jaime
tocava na rua. E o modo como se apresentavam aqueles senhores à
porta de Sr. Jaime, compondo um grupo que tocava todas as noites na
porta de uma das casas da Rua dos Doidos, era sempre reconfortante.
Vendo aqueles senhores com seus linhos e suspensórios e bigodes e
barbas sentia-se sempre tão protegida.
Muitas vezes brincando
na casa de avó, Leidiane ouvia do quarto da frente que abrigava a
antiga barbearia de seu bisavô o som de Sr. Jaime. Adorava ficar
ali, sentada na cadeira de madeira alta e espaçosa, a cadeira de
barbeiro. Olhando no espelho imenso de onde se via também a janela
da rua e os transeuntes que passavam pela calçada. Durante os
sábados enquanto ficava deitada no chão da sala, olhando para o
quarto-barbearia, a porta da rua e a janela, ambas abertas o tempo
todo, sempre esperava uma surpresa. Algum parente da roça que vinha
à cidade para vender na feira, algum amigo que morava na rua de
Baixo, ou no Malvão que aproveitava que desciam para a feira e davam
uma passadinha rápida. Alguém que fosse trazer um prato de feijão
ou um litro de siriguela ou umbu...as visitas do sábado eram sempre
esperadas. Os primos que estudavam em outra escola e não podia ver
durante a semana, o parente afastado, a amiga ou o amigo da outra
rua, o convite da vizinha pra ir no clube, ou na roça, ou no sítio
ou na fazenda e por fim, o domingo com o pai, a mãe e as irmãs
fazer churrasco em alguma beira de rio ali por perto da cidade. Em
vários pontos da estrada o Rio Corrente tem lugar bom pra tomar
banho, até na Prainha, atras do aeroporto, que é perto da cidade,
tem lugar bom... “Será que amanhã, painho vai levar a gente para
tomar banho de rio?” Pensou no exato momento em que o dente voltou
a doer. Conseguiu amolecer um pouco mais. Quem sabe balançando mais
esse dente, ele não cai antes de irmos pro rio...
“- Ohhhhhhhhhhh
Leidiaaaaaaaaaneeeeeeeeee!!” - gritou “mainha” da porta da casa
de sua avó. Foi quando Nani, num susto quase arranca o dente de uma
vez:
“- jáaaa voooou
mainhaaaa!” - não entendia porque mesmo do outro lado da rua, a
mãe precisava gritar tanto pra chamá-la para ir pra casa.
Estava tarde, Sr. Jaime
já estava limpando seu sax com a mesma flanela branca. Não ia mais
tocar naquela noite...
L.C. 31 de janeiro de 2014