sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Sr. Jaime


Leidiane já estava cansada, com a testa molhada colando sua franjinha já grande que furava seus olhos, quando se sentou na calçada e disse que não ía mais brincar. Todo mundo ficou chiando porque ela sentou e emburrou a cara dizendo que dessa vez estava fora.

Depois que todos saíram da sua frente e voltaram a correr ela logo levou a mão à boca e voltou a balançar o dente de leite que estava prestes a cair. Ficava ali, se refrescando numa das raras brisas que sopram durante o verão de Santa Maria da Vitória, olhando os amigos brincarem.

Quando o coração voltou a bater normalmente no peito percebeu que estava sentada na calçada de Sr. Jaime de onde, todas as noites, saía um som solitário e obscuro de Sax.
A casa de Sr. Jaime de todas as casas da rua dos Doidos era a casa que mais lhe atraia. Fica logo abaixo de um poste, ou melhor, fica logo no início da penumbra que se forma no limiar do reflexo da luz no chão ao redor do poste. A faixada da casa não ostentava nenhuma tinta. De frete a ela podia-se ver um pequeno jardim do lado direito, um corredor no lado esquerdo onde no fundo via-se uma porta que parecia da cozinha. Logo atrás do jardim, a varando de um quarto que nunca viu a porta aberta, sequer a janela. A casa de Sr. Jaime é uma casa aberta, mas que nada mostra. Nunca entrou lá. A casa escondia um universo, e como tal, misterioso. O lugar onde nossa imaginação não pode habitar.

E de lá... das penumbras do corredor da casa de Sr. Jaime, o som lamentoso do Sax. O som que atravessa todas as memórias da sua infância na Rua dos Doidos.
Algumas vezes Sr. Jaime tocava na rua. E o modo como se apresentavam aqueles senhores à porta de Sr. Jaime, compondo um grupo que tocava todas as noites na porta de uma das casas da Rua dos Doidos, era sempre reconfortante. Vendo aqueles senhores com seus linhos e suspensórios e bigodes e barbas sentia-se sempre tão protegida.

Muitas vezes brincando na casa de avó, Leidiane ouvia do quarto da frente que abrigava a antiga barbearia de seu bisavô o som de Sr. Jaime. Adorava ficar ali, sentada na cadeira de madeira alta e espaçosa, a cadeira de barbeiro. Olhando no espelho imenso de onde se via também a janela da rua e os transeuntes que passavam pela calçada. Durante os sábados enquanto ficava deitada no chão da sala, olhando para o quarto-barbearia, a porta da rua e a janela, ambas abertas o tempo todo, sempre esperava uma surpresa. Algum parente da roça que vinha à cidade para vender na feira, algum amigo que morava na rua de Baixo, ou no Malvão que aproveitava que desciam para a feira e davam uma passadinha rápida. Alguém que fosse trazer um prato de feijão ou um litro de siriguela ou umbu...as visitas do sábado eram sempre esperadas. Os primos que estudavam em outra escola e não podia ver durante a semana, o parente afastado, a amiga ou o amigo da outra rua, o convite da vizinha pra ir no clube, ou na roça, ou no sítio ou na fazenda e por fim, o domingo com o pai, a mãe e as irmãs fazer churrasco em alguma beira de rio ali por perto da cidade. Em vários pontos da estrada o Rio Corrente tem lugar bom pra tomar banho, até na Prainha, atras do aeroporto, que é perto da cidade, tem lugar bom... “Será que amanhã, painho vai levar a gente para tomar banho de rio?” Pensou no exato momento em que o dente voltou a doer. Conseguiu amolecer um pouco mais. Quem sabe balançando mais esse dente, ele não cai antes de irmos pro rio...

“- Ohhhhhhhhhhh Leidiaaaaaaaaaneeeeeeeeee!!” - gritou “mainha” da porta da casa de sua avó. Foi quando Nani, num susto quase arranca o dente de uma vez:

“- jáaaa voooou mainhaaaa!” - não entendia porque mesmo do outro lado da rua, a mãe precisava gritar tanto pra chamá-la para ir pra casa.

Estava tarde, Sr. Jaime já estava limpando seu sax com a  mesma flanela branca. Não ia mais tocar naquela noite...

                                                                                                                L.C. 31 de janeiro de 2014